“Tudo Perdido, absolutamente perdido”
- rjmquanticus
- 9 de jun.
- 3 min de leitura

Esta expressão, usada no Ato I, Cena I, refere-se ao momento em que o navio que transporta o rei Alonso de Nápoles, seu filho Fernando e outros nobres parece estar prestes a naufragar. A cena evoca o caos absoluto: trovões, gritos, ordens desesperadas da tripulação… até que alguém — um marinheiro ou nobre — exclama que tudo está perdido. A frase dessa personagem expressa o desespero e a crença de que todos os tripulantes e passageiros vão morrer afogados.
Quando olhamos de perto para a nossa vida, especialmente para os nossos problemas, estes parecem ser maiores à medida que ampliamos a sua imagem. Ampliamos porque queremos analisar um possível alívio, talvez uma fuga, algo que possa ser uma saída, uma escapatória viável para um nível onde essa situação problemática possa ser erradicada da nossa vista. Só que muitas vezes fazemos isto ao nível do problema, não do da solução. Ao nível da solução não precisamos de subir ao mastro principal do navio para antever a próxima tempestade e depois rezar para que o barco não afunde. Quando confiamos que a vida, ao nível das escolhas conscientes que fazemos, pode ser fluida embora não isenta de problemas, o nosso caminho se torna mais reto porque as soluções alumiam o percurso que fazemos para nos encontramos connosco próprios. Dito por outras palavras, podemos até perder o barco na próxima grande tempestade da nossa vida, mas não perdemos a esperança de nos agarrarmos a uma tábua de salvação. O papel das escolhas inconscientes que nós fazemos todos os dias com os nossos olhos da alma fechados é como irmos ao teatro ou irmos ao cinema com a nossa cara metade e decidirmos usufruir de todo o programa de olhos vendados. Podemos até usar os outros sentidos para descodificar parte da experiência, mas provavelmente não usamos os principais.
Ao nível da alma, que é o da solução, não bombardeamos o nosso sistema imunitário com falsas novidades, daquelas que sabemos de antemão que nos fazem mal, como por exemplo consumir notícias que nos causam ansiedade, comida que fomenta a obesidade e atitudes que repelem e destratam outras pessoas. Na minha profissão como terapeuta de massagem uma vez recebi uma cliente que me confessou ter tomado um ansiolítico antes de vir receber a sua massagem de relaxamento porque teve receio (o tal medo antecipado que o nosso Ego faz escudar o nosso Eu genuíno) que o/a massagista a magoasse no decurso da terapia. Ora eu fiz-lhe ver de uma forma carinhosa que o massagista é que se adapta ao cliente, e não o inverso. O que isto quer dizer é que o nosso Ego se refugia nas sensações do corpo fazendo com que os nossos neurónios disparem neurotransmissores capazes de mudar a nossa vida por completo, provavelmente comprometendo por arrasto esse processo para a via da doença e da morte. Tal como uma célula cancerígena que, ao espalhar-se pelo corpo, o consome e acaba por morrer com ele, também o Ego se extingue connosco no nosso último suspiro.
Portanto, antes de darmos tudo por “perdido” como diria Shakespeare na sua obra, temos que identificar as obras do Ego removendo a venda que levámos para assistir ao espetáculo da vida.
A fim de que tudo o que vemos depois de removermos a venda corresponde às prioridades da nossa alma, que somos nós quando estamos no nosso espaço expandido de quietude, tranquilidade interior e conscientes de todas as nossas ações, temos que desacelerar.
A velocidade com que queremos ter as coisas, enriquecer depressa, chegar primeiro a todo o lado, comer demais sem escutar o corpo, treinar até levar o corpo a limites doentios e apegarmo-nos aos nossos bens são tudo sintomas de que já estamos a ressonar alto e de olhos bem vendados no teatro ou cinema da nossa vida.
Quando somos carinhosos, partilhamos a nossa tábua de salvação com mais pessoas, quando treinamos com consciência, quando comemos uma garfada ou colherada de cada vez, devagar, quando somos generosos com os nossos bens e tempo e respeitamos as outras pessoas, saberemos no íntimo que mesmo que as tempestades nos tirem ou destruam as coisas que pertencem ao domínio do Ego, ao olharmos para o horizonte veremos ao longe a paz de um sol que se esconde além da linha do mar, e que, quando desejar brilhar, não pedirá permissão para fazê-lo.



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